Análise crítica da Lei do Superendividamento
Conter muitas dívidas e sobretudo não conseguir honrá-las, faz parte da realidade de milhares de pessoas, e considerando os efeitos macroeconômicos causados na pandemia da covid-19 este cenário se intensificou ainda mais, números da SERASA e da Confederação Nacional do Comércio apontam que quase 70% (setenta por cento) dos brasileiros possuem dívidas atrasadas.
Como reflexo desse cenário e buscando alternativas para essas pessoas, foi sancionada a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181/2021), que busca aperfeiçoar a disciplina do crédito, a prevenção e o tratamento do superendividamento, alterando o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso.
A lei em questão tem por finalidade intensificar as medidas de prevenção e informação do superendividamento, incorporar a cultura da concessão responsável de crédito e amplificar a conscientização da cultura do pagamento das dívidas, como incentivo à renegociação e à organização de planos de pagamento pelos consumidores.
De acordo com a lei, considera-se o superendividamento como a impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa natural e de boa-fé, de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial (CDC, artigo 54-A), ou seja, quando o consumidor de boa-fé não consegue garantir o pagamento de suas dívidas, incluindo as vincendas, sem comprometer os gastos necessários com despesas básicas, como alimentação e moradia.
Podemos concluir que a Lei será aplicada apenas às pessoas naturais, ou seja, não estarão incluídas as pessoas jurídicas, ainda que consumidoras, pois o instituto reservado à elas será a Recuperação Judicial, disciplinada por norma própria. Além disso, o legislador cuidou de especificar formas específicas de superendividamento, sendo elas: o ativo consciente, o consumidor dá causa ao endividamento (ativo), tendo consciência de que não terá condições de adimpli-las; o ativo inconsciente, o consumidor também será o responsável pelo endividamento, contudo pela simples falta de controle de finanças e o passivo, diferente dos anteriores, o consumidor não dará causa, mas sim, será afetado por fatores externos que desencadearão o inadimplemento das dívidas, como por exemplo, o desemprego e a pandemia.
Destarte, a Lei protegerá apenas quando configurado o superendividamento ativo inconsciente e o passivo, conforme dispõe seu art. 54-A, § 3º:’’ O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.”
A Lei, conforme mencionamos anteriormente, busca incentivar a renegociação, a organização de planos de pagamento pelos consumidores e a garantir o mínimo existencial, desta forma ela possibilitará a pessoa superendividada a solicitar a renegociação em bloco das dívidas no Tribunal de Justiça do seu Estado, onde será realizada uma conciliação, na presença de todos os credores, a fim de elaborar um plano de pagamentos que encaixe no seu orçamento. E, buscando a celeridade dessa conciliação, também poderá ser realizada nos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como Procon, Defensoria Pública e Ministério Público.
A renegociação englobará as chamadas dívidas de consumo, principalmente as relacionadas aos boletos, carnês, contas de água e luz, empréstimos contratados em bancos e financeiras, crediários e parcelamentos. Incluindo as dívidas vencidas e vincendas que fazem parte da lista de dívidas contempladas pela lei.
Contudo, a Lei é clara quanto à impossibilidade de renegociação quando configurada dívidas oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, como impostos e demais tributos, de financiamentos imobiliários e de crédito rural, bem como pensão alimentícia e produtos e serviços de luxo. A nova lei permite que consumidores endividados possam renegociar todas as dívidas ao mesmo tempo, diferenciando-se dos mutirões, onde as dívidas são renegociadas individualmente.
As negociações em bloco podem converter-se em acordos abrangendo todas as instituições credoras. Assim, o superendividado consegue pagar em conjunto suas dívidas com a sua única fonte de renda.
Partindo-se do procedimento em si, primeiramente, a pessoa superendividada precisa procurar os órgãos de defesa do consumidor ou o Judiciário. Ela tem de organizar as informações de todas as suas contas em aberto, incluindo o valor total que deve. Será igualmente importante calcular o “mínimo existencial”, ou seja, o valor correspondente às despesas mensais que assegurem a sobrevivência da pessoa e de sua família. Com esses valores em mãos, poderá ser formulado um plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, que ressarcirá todas as pessoas e empresas com quem esteja em débito, mas principalmente, com parcelas que não comprometam a quantia mínima necessária para manter a sua sobrevivência.
Neste plano será garantido aos credores o recebimento de no mínimo o valor principal corrigido por índices oficiais, sistema semelhante da recuperação judicial e permanece a obrigação da quitação total da dívida após encerrado o plano, ou seja, o plano de pagamento não quita toda a dívida.
Nos tribunais, todas as empresas e pessoas naturais credoras serão convidadas para uma audiência de conciliação. Essa será a ocasião que será reconhecida a situação em que o devedor se apresenta, os limites orçamentários e as condições de pagamento.
O juiz responsável pela conciliação, nos casos em que os credores não comparecerem à audiência, poderá suspender a exigibilidade da dívida, interromper os encargos de mora, como juros e multas dos valores inadimplentes, bem como impossibilitar que eles cobrem a pessoa devedora durante a vigência do acordo em bloco.
Quando o credor ou credora não realizar o acordo na audiência, o juiz poderá elaborar um plano de pagamento judicial compulsório e essa dívida seguirá para o “fim da fila”, recebendo-a apenas após quem fechou acordo. É importante que o credor ou o preposto designado para a audiência tenha “poderes especiais e plenos para transigir”.
Em relação ao acordo que for firmado na audiência, será ele homologado pelo juiz ou juíza e a sentença judicial terá a mesma eficácia de título executivo judicial e força de coisa julgada. Nele também ficarão definidas as condições do pagamento, ou seja, montante global a ser pago, eventuais descontos (juros, por exemplo), quantidade e valor das parcelas, além da duração do plano de restituição.
A sentença igualmente registrará quando o consumidor será retirado dos cadastros de inadimplentes. Constará a suspensão ou extinção de ações judiciais de cobrança, assim como a obrigação do consumidor a não piorar sua situação de superendividamento, contraindo novas dívidas. O Diálogo constante e a transparência serão decisivos para alcançar um acordo que prevaleça os interesses de todas as partes.
Desta forma, perceba-se os evidentes impactos na atividade empresarial entre a empresa e o cliente.
Por óbvio, a presente Lei trouxe alterações no Código de Defesa do Consumidor, como pudemos observar, mas também alterou no Estatuto do Idoso.
A modificação no Estatuto foi no seu art. 96, o qual dispõe sobre a tipificação da discriminação da pessoa idosa, incluindo-se a mesma, uma excludente de tipicidade (art. 96, §3º), qual seja,’’ não constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso”.
Com o advenho da presente lei, a relação de consumo evoluiu positivamente em alguns aspectos, dentre as quais, abordaremos oito.
Primeiro, passará a existir condições mais justas de negociação para quem contrata crédito, ou seja, com a aprovação da lei, passa a proporcionar ao consumidor, além da recuperação financeira, o resgate do seu poder de compra, a interrupção de cobranças vexatórias e constrangedoras, garantindo sua dignidade, mas também estimula o consumidor a obter uma maior consciência sobre como usar seu crédito. A segurança ao consumidor será garantida antes da contração da dívida, pois proibirá propagandas de empréstimos do tipo’’ sem consulta ao SPC” e a falta de avaliação da situação financeira do consumidor.
Segundo, a possibilidade de recuperação judicial, ou seja, será possível renegociar as dívidas com todos os credores ao mesmo tempo. O intuito da lei é justamente garantir um acordo mais justo para os consumidores. O consumidor endividado poderá pedir ao judiciário a instauração de um processo, a fim de revisar os contratos, e consequentemente apresentar um plano de pagamento, por um prazo máximo de cinco anos. Não havendo êxito no acordo, o magistrado poderá determinar um plano judicial compulsório às partes, estabelecendo formas de pagamento, prazos, resguardando sempre, o mínimo existencial.
Terceiro, a garantia ao mínimo existencial, ou seja, o plano resguardará a quantia mínima de renda do consumidor endividado, para pagar suas despesas básicas e que não poderá ser utilizada para quitar as dívidas, impedindo assim que novas dívidas surjam.
Quarto, garante uma maior transparecia, ou seja, a lei determina em seu texto, a proibição dos bancos em ocultar os reais riscos da contratação de um empréstimo. A partir de julho, as financiadoras, bancos e qualquer instituição que venda a prazo, serão obrigados a informar os custos totais do crédito contratado, incluindo-se, taxas, tarifas, juros, e encargos de mora.
Quinto, proporciona o fim do assédio e pressão ao cliente. Tornou-se ilegal qualquer tipo de assédio ou pressão para persuadir os consumidores, especialmente quando se tratar de clientes analfabetos, idosos ou vulneráveis. Importante ressaltar, que caso um cliente se sinta pressionado durante o processo de contratação, poderá denunciar a instituição.
Sexto, a lei trouxe suporte ao consumidor, ou seja, a fim de que a lei seja garantida e respeitada, o Banco Central, e entidades como o PROCON irão acolher o consumidor, passando por treinamentos, a fim de regulamentar as novas regras e orientar de forma correta.
Sétimo, fomenta a educação financeira, estimulando o consumo consciente e possibilitando que o acesso a recursos financeiros sejam feitos de forma transparente.
Oitavo, a ampliação dos princípios do CDC e alterações em seu texto de lei, proporcionando uma maior segurança ao consumidor.
Incluíram os princípios da educação financeira e ambiental dos consumidores e prevenção e tratamento do superendividamento, como forma de evitar a exclusão social do consumidor (art. 4º, incisos IX e X), trazendo também 2 (dois) novos instrumentos da Política Nacional das Relações de Consumo (art. 5º):
VI – instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural;
VII – instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.
A Lei n. 14.181/2021 acrescentou também novos direitos básicos ao consumidor (art. 6º):
XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;
XII – a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;
XIII – a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.
Ainda, foram incluídas ao CDC novas cláusulas abusivas (art. 51):
XVII – condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário;
XVIII – estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores;
É certo que conforme foi exposto, muitos foram os pontos positivos identificados com a vigência da Lei, contudo, é importante também abordar sobre os aspectos negativos da lei.
Analisando a lei, encontraremos alguns termos que na vida prática causarão margem à interpretação
O primeiro ponto a verificar, é que a lei deixa clara a sua intenção de beneficiar o consumidor, pessoa física, exclusivamente, e exige um endividamento de boa-fé, mas como provaremos na prática a intenção do consumidor? Desta forma, entendo que seria pertinente incluir meios de se alcançar a resposta, como por exemplo eventual prova testemunhal, documental e depoimento pessoal do consumidor, a fim de que a lacuna pudesse ser preenchida.
Outro ponto controvertido da Lei foi na seguinte definição, não se aplica ao “consumidor cujas dívidas tenham, tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.”
A Lei impõe que seja dívida de boa-fé, o que exigirá a análise individualizada do caso, impõe igualmente limite financeiro para fazer jus ao direito, ou seja, não basta estar superendividado, a dívida deverá ser pequena. Tal conceito precisará ser definido na prática, pois tanto a classe média quanto a classe pobre sofrem endividamento.
Outro ponto a se observar, é que quando o objetivo é garantir a subsistência do padrão da parte superendividada, não poderá ser excluído deste conceito as despesas que eram habituais antes do desequilíbrio das finanças. Também será afastado os contratantes que assumem compromissos para não pagar. Contudo, estes são consumidores que se valem de fraude, e com isso não possuem benefícios, pois cometeram um crime antes de um endividamento. Entendo que encontrar e provar que algum consumidor assumiu dívidas com o intuito de não honrá-las seja algo raro e de difícil prova, isto porque, quando um crédito não é pago, os demais são bloqueados em razão da negativação, figurando fraude de uma única tentativa, ainda que simultânea.
Desta forma, existem lacunas na interpretação da norma, e necessidade de realizar provas, a fim de se constatar uma análise subjetiva do consumidor.
Vale pontuar igualmente, que quando a lei menciona que haverá instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento, inicialmente, gerará um custo ao Estado, situação que poderá ser interpretada de forma negativa, contudo entendo que por outro lado diminuirá a demanda no judiciário.
Outro ponto interessante para ser explorado, seria em relação ao art. 54-D, I, da Lei, que determina ao fornecedor ou seu intermediário, que informem adequadamente o consumidor, considerando sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento. Contudo, seria interessante que existisse um treinamento e fiscalização, a fim de evitar que os fornecedores se beneficiem, ante a falta de conhecimento dos consumidores.
De modo conclusivo, evidente que o ponto central desta nova lei é exatamente o consumidor superendividado que, devido à situação de desemprego, problemas de saúde, falta de controle de finanças ou por qualquer outro motivo, vê-se prejudicado em assumir e/ou honrar suas dívidas, cujas novas regras possibilitarão a renegociação de valores que, certamente, amenizarão as dificuldades.
É certo, de que como qualquer Lei, existirá as possíveis dúvidas, questionamentos e lacunas quanto a sua interpretação, mas na prática acreditamos que o Poder Judiciário suprirá e buscará as melhores e mais justas respostas para elas.
Por Beatriz Biondo Mazzon, OAB/SP 447.140, advogada no Carreira e Sartorello Advogados Associados.